Boa Páscoa, salve Kardec e ditadura nunca mais!

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Imagem de Jesus feita pela Inteligência Artificial, a partir do Sudário.

Por uma coincidência significativa, hoje, 31 de março de 2024, se encontram três datas. A comemoração da Páscoa cristã, os 155 anos da morte de Kardec e os 60 anos do Golpe militar no Brasil.

Podemos tecer alguma intersecção entre esses fatos? 

Acredito que sim. A Páscoa começa com a ceia final de despedida de Jesus com os amigos na quinta, passando pelo julgamento sumário, num conluio entre fariseus e romanos, seguido de tortura e bárbara execução na cruz e, no terceiro dia, sua aparição aos discípulos. Para os espíritas, não foi uma ressurreição do corpo, mas a materialização do Espírito, como prova da sua imortalidade.

Para muitos cristãos hoje, do campo progressista, tanto católicos, como protestantes e espíritas kardecistas, entende-se essa morte, muito mais do que seu simbolismo religioso de resgate dos pecados humanos pelo sangue de Jesus, como a perseguição a alguém que estava ao lado dos pobres, dos oprimidos, que representava uma ameaça ao poderio romano e judaico, pelo anúncio de um Reino de justiça, igualdade e fraternidade. 

Essa visão de entender Jesus por seu lado ético, de exemplo para a humanidade, de anúncio de um projeto do Reino, e não como um salvador, foi feita por Kardec, no século XIX, seguindo a tradição iluminista, que propunha religião como moralidade e não como instituição dogmática e hierarquizada. 

Ora, a visão do Cristo nessa perspectiva, que é a visão de uma teologia da Libertação, de um Herculano Pires no seu livro O Reino, que enfatiza sua postura humanista, acolhedora das dores humanas, de que participou, e propositiva de novas relações igualitárias e fraternas, contrasta radicalmente com todo o discurso da extrema direita, essa que prega ditaduras, torturas, opressões e morte – muitas vezes em nome do próprio Jesus.

E é de uma ditadura dessas que nos lembramos hoje contritos, tristes e indignados, promovida no Brasil por militares, empresários, elites, todos apoiados pelo império dos EUA. E é de uma ditadura dessas que nos livramos no dia 8 de janeiro de 23, por muita sorte, por algumas resistências, e também porque naquele momento, os EUA não tinham interesse político nisso e alguns de seus representantes mandaram recado que não iriam apoiar. 

Essa ditadura que o inominável, inelegível e futuro habitante da Papuda, louvou sempre na pessoa do abominável Ustra, que torturava mulheres grávidas e que o dito cujo mencionou elogiosamente no impeachment da Dilma – um golpe também, e esse muito bem apoiado pelos norte-americanos. Se nesse dia, como exigia a Lei, esse homem tivesse sido caçado e preso, por apologia à tortura, teríamos economizado muitas dores e lágrimas nos últimos anos. 

Nesses 60 anos de memória inapagável do Golpe de 64, o governo Lula impediu oficialmente as comemorações favoráveis a esse lamentável evento histórico – e fez muito bem – mas também recomendou um incômodo e inadmissível silêncio em atos oficiais para relembrar mortos políticos, muitos até hoje sem sepultamento, e todas as tragédias provocadas por uma violência brutal, principalmente nos chamados “anos de chumbo”. 

Infelizmente, voltando a Kardec, muitos espíritas, como de resto muitos católicos e protestantes, apoiaram tanto a ditadura de 1964, como a quase instalação de um golpe em 2023. Conservadores, defensores de violências políticas, em completa incoerência com o Mestre a quem pretendem seguir, estão presentes em todas as dominações. No caso dos espíritas, não estão apenas contrariando Jesus, que consideram também seu mestre, mas o próprio Kardec, que defendia a liberdade de pensamento, a fraternidade universal e a não violência.

De incoerência a traição dos princípios essenciais das grandes tradições espirituais é que são feitos também esses momentos tenebrosos de sufocamento da liberdade e da justiça e por isso mesmo não podemos esquecer a história, sempre uma grande mestra. Ditadura, nunca mais!


Diário da Mama 11 – A cura e a chegada aos 60

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Esse é último Diário da mama que escrevo, porque alcancei a cura. Escrevo feliz, certa de que superei uma batalha, que afinal não foi tão difícil, e que depurei algumas das sombras que carregava na alma. A impressão é que elas se materializaram no câncer e com a cura do tumor, esvaíram-se também.

Toda doença talvez seja isso: acúmulos de mágoas, de emoções desencontradas, de excesso de luta, de estresse galvanizado… tudo isso desagua no corpo, se solidifica e acaba nos adoecendo. Não que devamos nos culpar por isso. Ao contrário, a doença pode ser catártica, curativa, regenerativa – se a encaramos de frente, se ouvimos sua voz, se olhamos para dentro. Mesmo se a morte seja o final do processo, também a morte pode ser cura e vida depurada. Morte não é fracasso, quando chegou a hora. É apenas um final harmonioso de quem viveu o que tinha que viver.

Mas não é esse meu caso, por enquanto. Ainda tenho vida aqui mesmo, pela frente, e muitos projetos a realizar. Fiz a cirurgia e não há mais nenhuma célula de câncer em mim – assim está atestado no laudo anatomopatológico. Quando li o resultado, invadiu-me imensa alegria, mesmo já sabendo que esse seria o final de todo esse processo, (apesar de provavelmente ter ainda de fazer radioterapia). Parece que atravessei uma etapa que me fortaleceu, que me conectou mais profundamente comigo, com Deus, com meus afetos, com as verdades essenciais da vida.

E esse sentimento de paz, de plenitude, de alcance, apresenta-se justo nesses dias, em que estou completando 60 anos de vida. 60 anos! Estou entrando na velhice!

Sagitariana, nascida dia 4 de dezembro, batizada de Dora Alice por meu pai, em dupla homenagem a Dorival Caymmi (Dora rainha do frevo e do maracatu… Doralice, eu bem que te disse…). Foi uma escolha certíssima. Adoro música, adoro Caymmi, adoro a Bahia.

Mas Incontri fui eu que escolhi, em homenagem à minha linhagem materna, meu bisavô André Incontri, minha avó Edera, minha mãe.

Chego aos 60, satisfeita com o que vivi até aqui, de consciência em paz. De nada me arrependo, de tudo aprendi, não tenho nostalgias, gosto sempre mais de hoje do que de ontem e não temo o amanhã. Entregar-se ao fluir da existência é o melhor aprendizado para não sermos excessivos no controle, iludidos com onipotência e irmos nos deixando surpreender pela vida que, sim, às vezes traz boas notícias e presentes divinos. E quando nos dá solavancos, apenas nos fortalece.

Enquanto descansava das quimioterapias, enquanto estou repousando ainda da cirurgia, refiz planos, idealizei livros e projetos, pensei os próximos 20 anos – tudo o que quero completar para deixar um legado útil e consistente. E depois, aí sim, virá a Senhora morte, libertadora, para me levar nas asas dos ventos para um além de refazimento e reencontros.

Já vivi pelo menos ¾ da vida. E daqui para frente, acho que não tropeço mais em detalhes, em dores, em dissabores. Guardarei a serenidade que já era minha e que se fez mais sólida.

Um viva à vida! Um obrigada e todas e todos (ainda não me soa português bom, o atual “todes”), pelas preces, pelas vibrações, pelo amor, pela torcida. E acima de tudo, gratidão a Deus, pai nosso e mãe nossa de cada dia!

Minha mama está inteira, pouco invadida, pequena cicatriz e sem nenhuma dor, nem tumor! Amém!

Esfalfa-nos a vida

Em luta renhida

Mas depois traz remanso

Aconchego e descanso…

Das sombras guardadas

Renova as jornadas

Das lágrimas frias

Refundem-se alegrias.

Tudo se transmuta

Transcende, se sublima

E a alma que se firma resoluta

Sem fuga da luta

Vai e carrega o fardo acima.

Invadem os mares

Revoltos, cinzentos.

Depois a manhã em altares,

ensolarados ventos…

Assim, a sábia vida,

Tessitura divina,

Rendilhando-nos a subida

Refinando-nos a sina

Ensinando que, embora,

Tanto esmague e nos doa

Tudo refulge em aurora

Tudo em nós aperfeiçoa,

Tudo em bem nos ressoa…


Diário da Mama 10 – A caminho da cura, com ansiedade política

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Fiquei um tanto de tempo sem escrever, porque melhorei muito e estou trabalhando o quanto posso (será que já poderia? Mas não há como!!). Segundo a avaliação das médicas que me acompanham, o resultado foi brilhante! De fato, de 5 cm que tinha o tumor, reduziu-se à insignificância de 4 mm e esse pedacinho será retirado numa cirurgia, aparentemente tranquila, que farei agora, dia 3 de novembro.

Atribuo esse resultado à competência da equipe do AC Camargo, mas igualmente à quantidade e sinceridade das orações que recebi de toda parte, de todas as religiões e não-religiões, e também às orações que eu mesma fiz. Durante todas as 8 aplicações de químio, estive sempre em estado de prece, meditação e serenidade, ouvindo música e atravessei tudo sem maiores complicações.

Engraçado que quando iniciamos um pedaço difícil, antes de pisar o pé no processo, a ansiedade nos tortura. Depois que pisamos na travessia, a coisa parece mais fácil, apesar dos impactos. Depois que passou, a impressão é que não foi quase nada. Tirei de letra.

No último dia da químio, fiz questão de homenagear a equipe do 12º andar da R. Pires da Mota. Muita competência aliada a muito humanismo. Li em voz alta a poesia abaixo e cantei meu spiritual predileto Swing Low, Sweet Charriot.

 

Agradecimento

 

Que melhor definição

De competência e eficiência

Do que a perfeita união

Entre o amor e a ciência?

 

Só a técnica não basta

Para cuidar e curar

Quando a doença nefasta

Chega pra nos visitar!

 

E aqui nesse AC Camargo

Humanismo é que não falta

Se a químio dá gosto amargo

Gentileza aos olhos salta!

 

Assim, durante a jornada

Que nos abate e enfraquece

Me senti aconchegada

No afeto que robustece!

 

Só posso dizer, portanto,

Nesse momento final

Muito obrigada por tanto

Me despeço em alto astral!

 

 

Mas há algo de que não posso me furtar de comentar. Concomitante com meu processo pessoal, há um pesadelo que estamos vivendo há anos no Brasil e que agora se agravou, no momento das eleições: o avanço da extrema-direita, violenta, opressora e que tomou conta de quase 50% da população brasileira.

A multiplicação dos discursos de ódio, de atos de violência, inclusive com mortes, tem deixado muita gente em estado de depressão e ansiedade aguda. A fome que voltou a se instalar que, no governo Lula, havia desaparecido do cenário nacional. O desmatamento maciço da Amazônia que ameaça não só o Brasil, mas o mundo – e por isso (e por outras razões também) artistas, pensadores e políticos de toda parte do planeta estão apoiando Lula para presidente. Os milhares de brasileiros que podiam não ter morrido se o inominável tivesse gerido a pandemia com responsabilidade, empatia e sem negacionismo. E a corrupção maciça que se fez corriqueira, assombrosa, como nunca vista (mas muitos não querem votar no “Lula ladrão”!!! Isso tudo nos atola em desânimo e ansiedade.

Não é possível passar psiquicamente incólume diante de uma situação de tanta gravidade, com o risco de perdermos o que nos resta de democracia e mergulharmos o país numa autocracia, numa teocracia, numa ditadura…

Diante disso, nossos problemas pessoais perdem o peso, porque há tantos sofrendo a injustiça, a violência, a fome e, sobretudo, perdendo os sonhos e a motivação para viver e lutar.

Assim, apesar de ainda me sentir doente, ainda a caminho de uma cura, que certamente virá completa lá por fevereiro de 2023, estou procurando me manifestar nas redes, no contato direto com as pessoas, para garantirmos e retirada desse desgoverno do país. Sei que isso não resolve os imensos problemas que teremos que enfrentar. É apenas um outro recomeço.

Mas tenho meditado muito em como podemos nos próximos anos educar o povo, acabar com o analfabetismo político, que proporciona toda essa manipulação e munir os brasileiros de uma leitura mais lúcida do mundo. Terá de ser um mutirão para desenraizarmos o bolsonarismo, que esse sim, é um câncer que se instalou na alma brasileira, provocando a cisão das famílias, a ruptura entre amigos e a ameaça de morte, o exílio e até o assassinato de quem não aceita esse fascismo tupiniquim.

Assim, quero ficar boa logo, porque a luta continua e jamais desistiremos, insistindo nos ideais de paz, justiça e fraternidade e resistindo aos retrocessos destrutivos que nos ameaçam.


Diário da Mama 9 – A justa medida da potência

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Semanas se passaram e eu aqui sempre querendo voltar ao meu diário, mas estava sem forças. As químios vão se sobrepondo e o corpo vai ficando mais bombardeado, mais abatido, mais exaurido. A imunidade baixa, as infecções se sucedem e o desânimo toma conta. Já por duas vezes tive que adiar a data da infusão, por conta de infecções oportunistas. Faz parte. A boa notícia é que o tumor está diminuindo bastante.

Mas não é possível dizer que está tudo ótimo, porque não está. É estranho hoje como muitos só querem ouvir palavras de gratiluz e pensamentos positivos e não aguentam uma simples afirmação: não estou bem! Se ousamos dizer que está pesado, punk, difícil… logo aparecem aqueles encorajamentos de que vou vencer, de que vou ficar curada, de que vai passar. Está certo, a chance de cura é praticamente 100%, mas a travessia é penosa, para chegar lá.

É preciso saber ouvir que o outro está mal e simplesmente concordar que é difícil mesmo – só isso. Muitos fazem esse exercício de empatia e acolhimento, mas outros muitos não se adaptam à ideia de que há sofrimento e desfalecimento no caminho. Hoje, há uma tendência generalizada de se mascarar a dor, porque somos obrigados à felicidade diária nas redes sociais.

Entretanto, como toda dor traz aprendizagem, fico procurando extrair o que pode ser proveitoso nesse caminho, sem ideias punitivistas, que me façam procurar culpas presentes ou passadas para justificar o que estou enfrentando. A questão é o que se pode aprender. 

Acho que o que mais me martiriza nesse processo todo não é o mal-estar, as dores, a doença em si e o seu tratamento tão descompensador, mas o fato de me reduzir a energia, me paralisar as atividades do dia a dia, me sentir meia Dora ou um quarto de Dora e não a Dora inteira, com toda a potência que me é própria. Tenho que usar minha potência para me cuidar e superar o momento e não para produzir como estou acostumada, cuidar dos outros, como sempre cuido – apesar de não estar totalmente sem produção e sem ação.

E aí que entram as reflexões desses tempos. Lembro sempre de uma frase do meu mestre e amigo Herculano Pires, de que não devemos ter complexo de Deus. Estava ele se referindo a um dos atributos de Deus, que é a onipotência. Ora, muitas vezes, gostaríamos, sim, de ser onipotentes: arrancar o sofrimento dos mais amados, impedir as escolhas equivocadas de outros, consertar os problemas do mundo, trabalhar além dos limites humanos, num tempo sem tempo…E como não somos onipotentes, sentimos o gosto da impotência, frustrante, entristecedora.

Embora não sejamos onipotentes, somos sim potentes. Não podemos pretender a onipotência divina,  mas Jesus também disse que somos deuses. Ou seja, somos capazes de iluminar o caminho e criarmos beleza, amor e transformação. 

Eis o que é preciso, pois –  um meio caminho entre a sensação de impotência, que nos impede de avançar e a pretensão à onipotência, que nos esmaga por dentro.

Integrar-se na harmonia da vida, fazendo o que devemos, o que queremos, o que podemos, com inteira presença. E entregando a Deus Pai e Mãe, o conjunto da obra, a visão do futuro, a medida da eternidade, renunciando à vontade de controle. Uma diminuição necessária da ansiedade. 

Agir, parar, respirar, prosseguir, com calma e esperança, paciência e consistência. Doenças podem ser essas pausas necessárias e também podem ser consequência de um excesso de ação exaustiva. Mas também são simples contingências de um mundo cheio de venenos para o corpo e para a mente, numa estrutura social em que contrariamos o tempo todo nossa natureza orgânica e espiritual. A incidência absurda de câncer no mundo demonstra que estamos doentes coletivamente e isso se materializa em nossos corpos. 

E hoje, vou pegar uma poesia emprestada, da minha querida amiga Larissa Blanco – aliás ainda inédita, onde ela fala justamente desse mundo que queremos, em que não seja preciso mais sequer haver domingos. 

Aos domingos 

Quando um poema se abre: paragens

Tornam-se rarefeitas as fronteiras 

Entre o azul e o corpo

E a consciência nos oferta acolhida: 

Parecem corretas e nobres 

As nossas escolhas de vida. 

É neste instante 

Que despenca do meu semblante 

O fruto amargo,

Meu olhar opaco 

De quem muito conjectura

Finalmente descansa, desfruta 

E não mais censuro o avanço da cerca viva…

E dou-me conta do torpor que sinto

Ao ver o ser amado despido…

E lufadas de ar decolam do manjericão 

E transitam… 

Suavemente fecho os olhos 

– desisto de disputar com o Sol 

a minha retina –

E meus versos se põem a animar uma cena:

Os contornos de uma mulher que amamenta, serena. 

Imersa com sua prole 

Em um casulo de seda

Sob o teto morno de uma casa

Há pão sobre a mesa 

E uma aldeia espalhada pela sala. 

O futuro está abrigado 

Contra salteadores

Não há demandas para punhos cerrados

Não há extermínio dos mais fracos 

Nem sequer existem os domingos

Para cavar uma paragem

E garantir algum fôlego:

A vida já nasceu arejada,

Um poema pronto.

Larissa Blanco


Diário da Mama 8 – Uma vértebra no caminho

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Henri-Edmond Cross – Nude sleeper (1907)

O corpo em luta me acorda na madrugada. Eu, que na adolescência e na juventude ficava até à 3 ou 4 da manhã escrevendo, agora levanto quase esse horário para escrevinhar. Mas vejo o sol nascer e a orquídea que deabrochou à beira da janela do meu quarto. Olho no Whatsapp e lá estão lindas fotos que o meu querido Franklin Santana Santos me enviou do espaço que está construindo na Bahia, o Observatório do Ser. Queria estar lá, nessa terra que eu amo, mas a vida está suspensa. Já esteve durante dois anos de pandemia e para mim continua um tanto proibida no ir e vir. Escrever, trabalhar ainda pela telinha, descansar muito e cuidar de mim. É o que o momento pede, do que meu corpo e meu espírito precisam.

Ainda na madrugada, como uma laranja espanhola, dessas que dessedentam a sede diabética e um pote de gelatina diet, para aliviar a fome da cortisona e o desejo de doce, sem comprometer a glicemia.

Fiz minha quarta químio há dois dias e já encerrei a fase vermelha – uma etapa vencida. Mas uma semana atrás, estava internada por uma intercorrência. Uma vértebra quebrada, por uma esteoroporose que eu nem sabia que tinha, talvez agravada pela químio, pela cortisona… não sei e a medicina  também não pode quantificar muito, sempre digo que ela está longe de ser uma ciência exata. Sei que me vieram momentos de desânimo, ao constatar que terei agora de tratar de três coisas: a diabete, que já vem de tempos, mas foi piorada nesse processo, o câncer e a osteoporose… Respiro fundo, oro um pouco e levanto o ânimo e falemos das coisas boas que se dão nesse caminho.

Como sempre, o afeto e a espiritualidade são as âncoras da travessia.

Antes do evento da vértebra, recebi um gesto de amor que me tocou. Publiquei nas redes sociais e provocou comentários emocionados e alcançou centenas de visualizações. Samantha Lodi, minha amiga de poesia, de anarquismo, de Anália Franco e Louise Michel, veio me visitar. Por conta da pandemia, há mais de 2 anos que não nos víamos. Em certa altura da visita, ela saca uma máquina zero da mochila e rapa a cabeça, em solidariedade a mim. Empatia, companheirismo, amizade de mulher para mulher…

E deixem-me falar das mulheres… há muitos homens que estão solidários comigo nessa jornada, que me enviam palavras encorajadoras, preces e amor e me oferecem todo tipo de ajuda. Há meu pai que está comigo 24 horas.

Mas as mulheres… essa é minha maior rede de apoio. A irmandade, a sororidade, a cumplicidade, os mimos… Vou citar algumas.. As Cláudias amadas, irmãs em espírito, já que não tive irmãs de sangue nessa vida, a Mota e a Gelernter, que me acompanham nas químios e me cobrem de amor, de presentes e de preocupações. A Nena, que trabalhou comigo em casa mais de 10 anos, mas voltou para me acompanhar nos dias em que não tenho ajuda e me faz suas comidas deliciosas e amorosas. A Cleusa, a que me ajuda na casa há pouco tempo, que tem o nome de minha mãe e me apoia nesses dias também, em alternância com a Nena. Nos dias em fiquei internada, minhas ex-alunas, e amigas do coração, Larissa Blanco e Litza Amorim, estiveram no hospital comigo, cheias de cuidados e apoio. A Maria Paula Bernasconi, a quem não via há décadas, que foi aluna minha no Centro Espírita Pedro e Anita (eu tinha 18 anos!!), e agora passa aqui em casa e me deixa caixas de chocolate diet – o chocolate que alivia qualquer dor física ou moral (pelo menos para as mulheres). Ainda preciso falar de minha tia Maria Lucia, a titi, frustradíssima por não poder estar comigo, por problemas de saúde e por morar longe, que não cessa de me mandar palavras de amor e minha prima Ana, que não se esquece de fazer o mesmo. E ainda tem a Laurinha, que vem dar comida para as cachorras, quando preciso, e fazer umas comprinhas…

E assim, as dores vão se amainando, o tempo vai se passando menos lento, porque o aconchego dado pelos afetos nos resgata de qualquer desânimo.

E ainda há as preces. Nunca é demais enfatizar que elas ajudam mesmo, são uma força real e seus efeitos são palpáveis. Durante as químios, oro com as Claudias, escutamos músicas que elevam e as reações durante a infusão têm sido nulas. Depois, nos dias seguintes, fico cansada, com a pressão baixa e palpitações. Um mal-estar generalizado. Mas nada de enjôo, nada de vômitos… Estou convicta de que a infusão flui tão bem porque há oração e afeto que me cercam o copo e a alma.

E a poesia que não falta:

Uma dor no caminho

Se cura pelo amor

Um desânimo do espinho

Se desata com uma prece

Essa que entretece

A fartura da esperança.

Nada se perde no chão

Se levamos no coração

A ofererenda dos amados

E o certo e divino pão.


Diário da Mama 7 – Entre químios

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As pessoas que acompanham o Diário da Mama me perguntam por nova escrita, no justo desejo de saberem como estou passando. Nem relatei a segunda quimio e já estou às vésperas da terceira. O dia em que fiz a segunda, já duas semanas atrás, deslizou com suavidade e foi menos impactante do que a primeira. 

É algo palpável, quase concreto o quanto a oração nos carrega, para atraversarmos os mares bravios da vida. A nossa própria, a que fazemos do profundo de nossa fé e as que nos são endereçadas, nas asas de pensamentos amorosos, sinceros e potentes. Nessa segunda vez, fui acompanhada por minha outra Claudia amiga-irmã, a Gelernter. E nossas orações, ao som de Hildegard von Bingen, foram muito confortadoras durante o processo da químio. 

Nos dias que se sucederam, porém, embora de início me parecessem mais amenos, em relação à primeira, foram se mostrando cheios de novidades incômodas: a diabete destrambelhada (por causa da cortisona), taquicardia, episódios de pressão baixa, neuropatia nos pés, alteração de paladar, mas sobretudo, muito, muito cansaço. Um cansaço que não passa, descansando. Que me faz me arrastar entre o trabalho e a cama, entre o almoço e a rede, entre o trabalho e o sofá. Todo mundo com quem converso que já passou por isso, confirma a exaustão como sintoma incontornável da quimioterapia. 

O choque da químio nos tira de nós mesmos, de nossa energia vital, de nossa potência. É temporário, mas é estranho. Mais estranho para mim que sou um furacão de atividades… mas não será isso o necessário no momento, um repouso forçado, para algum tipo de aprofundamento da alma? 

Essa quinzena teve um ponto alto que não posso deixar de mencionar, porque revela o quanto a arte é terapêutica e vital: fui com todos os cuidados possíveis (para me prevenir de pegar Covid) a um concerto aqui em Bragança, em homenagem a Vinicius de Moraes, nosso poetinha querido. Orquestra Jovem de Bragança, a neta do Vinicius, Mariana, cantando, e ainda meus sobrinhos participando do coral infantil. Foi um deleite. Nesse dia, saí revigorada e o cansaço fugiu. Fui dormir às duas horas da manhã, depois de uma pizza com meu pai e amigos, e pulei da cama disposta, no dia seguinte. 

Hoje, estou me preparando para enfrentar a quimio de amanhã. É sempre imprevisível como será. Mas sempre posso contar com a música e com a prece, com os amigos desse lado e do outro lado da vida. 

 

A cada trecho da escalada 

Na montanha do tempo 

Uma fé esforçada 

Uma tênue mirada 

No topo da chegada. 

A cada dia, um dia 

A cada dor esguia 

Minha alma se recria… 


Diário da mama 6 – Acordando ao sol

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Arte de Erika Lourenço

Sábado de manhã, o sol entrando pleno pelas janelas da sala e eu me sinto eu mesma, como se tivesse acordado de um período sonambúlico, em que estava me procurando. Alívio, esperança nas luzes do dia.

Os dias que se sucederam à químio foram difíceis. Dores intensas de cabeça, tontura, enjoo (menos do que o esperado), cansaço extremo e uma intercorrência: uma gastrite aguda medicamentosa.

A sensação era de que tinham me jogado violentamente contra um muro e eu não conseguia voltar a mim, tomar prumo, saber o que estava acontecendo. Quase plenamente bem, só 8 dias depois. Mesmo assim, trabalhei, cozinhei (pelo menos duas vezes), fui a supermercado, farmácia… tive que levar meu pai ao hospital numa emergência (está tudo bem agora), mas repousei muito mais do que gostaria. O principal clamor de qualquer doença é esse: o corpo suplicando descanso, que em tempos normais ele não teria. Eis uma dura lição: não ouvimos nosso corpo. Eu às vezes finjo que ele não existe. E eis que que ele se impõe de maneira dolorosa. Vejam que falo do corpo em terceira pessoa, como se não fosse parte de mim. Faz parte. Mas penso de verdade que sou mais do que o corpo.

No meio do caminho desses dias pós químio, raspei a cabeça. Chamei o meu amigo cabeleireiro Marcus Wagner em casa (com medo do Covid voando pelo salão) e pedi a máquina 0. Por quê? Iria cair mesmo, não queria que meus fios já tão alquebrados escorressem pelas minhas mãos. Então me adiantei, pelo menos para manter o controle da situação. Comprei e desenterrei do armário lenços, boinas, turbantes… estou experimentando e fazendo disso um ensaio estético. Não se deve perder a classe, não se deve entregar os pontos – aprendi com minha avó, com minha mãe e meu pai.

Ao raspar a cabeça, senti-me irmanada com monjas e prisioneiras, e com outras tantas milhões de mulheres que passaram e passam por tratamento de câncer e não me senti nem só, nem entristecida. Uma etapa do processo, na esperança de que meus cabelos renasçam mais fortes, mais à frente. Como eu mesma.

Em toda a caminhada, estou sendo acompanhada por olhares amorosos, palavras acolhedoras, afetos profundos, ajudas inesperadas, presenças espirituais quase palpáveis… E constato como apesar dos pesares, há amor no universo, há empatia, há humanidade humana!

E hoje, nesse sábado ensolarado, em que me sinto muito bem, abastecida de amor, a poesia cabe mais do nunca.

Presenças

O sol é presença

Metáfora da luz

Escondida na vida.

É pertença na lida.

A vida, essa teia

Que se alteia

De afetos e trocas.

E quando a dor nos desloca

Nos provoca

Nos toca e retoca

Eis que o sol que ilumina

É a força divina

Que nos sublima.


Diário da mama 5 – O corpo em luta

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Arte de Camila Soato

São 5 horas da manhã, quando escrevo esse texto, em noite dividida entre horas de sono profundo e momentos de incômodos aflitivos. O corpo reage ante o veneno injetado para combater o câncer.

Ontem foi o dia da minha primeira quimioterapia, iniciando o que os médicos chamam de fase vermelha, dois meses de ataque com duas drogas pesadas. O dia transcorreu da melhor maneira possível. Saí de Bragança Paulista cedo, dia ensolarado – graças a Deus o frio intenso passou – estava disposta e animada.

Almocei em São Paulo, para ir alimentada, como me recomendaram. E parti para as longas horas no AC Camargo. Cheguei às 12:30 e saí às 18:15. Minha amiga-irmã materna, Claudia Mota, me acompanhou em cada segundo, cheia de cuidados, mimos e suporte amoroso.

Não tenho palavras para louvar a competência e o humanismo desse hospital, onde meu pai já tratou durante 20 anos de um câncer nas cordas vocais e sempre teve o mesmo acolhimento. (Hoje ele está curado, em remissão desde 2018).

Passei pela consulta da oncologista clínica, que me explicou longamente todo o processo, todos os cuidados necessários – até com marcas de cremes e pasta de dente (infantil!) a serem usadas, respondeu uma lista de perguntas que levei por escrito. No final, pedi a ela que retirasse um momento a máscara e retirei a minha, para podermos nos ver de fato, rosto inteiro, sorriso aberto, num momento de encontro humano: Dr.ª Milena Shizue Tariki.

Das mãos dela, passei para o corpo de um técnico e várias enfermeiras que me examinaram, me cuidaram e me tutoraram no processo da químio – todas de uma delicadeza exemplar.

Um espanto sempre presente, que eu já conhecia no caso do meu pai, os médicos sabem e nem ligam. Tanto meu pai quanto eu temos pressão muito boa, 12/8. Basta estar no hospital para algum procedimento, embora estejamos aparentemente calmos, bem-humorados e sem aflições, a pressão dispara: a minha ontem estava 15/9. O nome disso é síndrome do jaleco branco.

E o dia foi transcorrendo, numa sala privativa, com vista linda, contemplando o dia ensolarado, com a selva de São Paulo à frente e as montanhas ao fundo, ainda garantindo que existe algo da natureza… Passou entre explicações e aplicações de remédios: anti-enjoo, cortisona, e por fim as ditas cujas. A primeira foi suave. Levei minha caixinha de som, presente do meu irmão para essa fase, e estava flutuando em vibrações de amor e de paz. Centenas de mensagens recebidas, de afeto sincero e palpável e preces de todas as religiões, que me embalaram o dia. Na segunda droga, tivemos que interromper na metade, pois a náusea e a tontura vieram. Para-se a químio, 20 minutos de dramim na veia, alívio, término da segunda dose. Quando veio o mal-estar, desliguei a música e recorri à respiração.

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Antes de sair, pregaram um aparelhinho em minha barriga, que vai disparar depois de 27 horas, uma substância para ajudar a não deixar a imunidade cair. Nesses primeiros dois meses, todas as vezes que aplicar a químio (ao todo 4 vezes) terei esse aparelho armado em meu corpo, que depois de disparar o remédio automaticamente, devo descartá-lo numa caixa e levar ao AC Camargo para incinerar. Tive, claro, a curiosidade de ler toda a bula do dito cujo no Google, e saber o quanto custa: uma módica quantia de 5 mil reais cada um!!! O valor de um só é muito mais do que eu pago pelo meu convênio mensal.

Saí zonza do hospital, enfrentei (sem dirigir obviamente) 2 horas de trânsito até em casa e cheguei para a sopinha feita pela Nena, uma pessoa que trabalhou comigo 10 anos, muito amiga e querida, com mão santa na cozinha, que quando soube do meu câncer se dispôs a vir ajudar nos dias em que eu precisasse. Estou cercada de todo amor possível.

Agora sim, a palavra certa e válida é gratidão (já escrevi que ando achando essa palavra muito desgastada: a pessoa recebe uma pequena informação ou um favor corriqueiro e a outra já vem com a profunda e vasta gratidão).

Reflexões do dia:

Apesar da intensa vivência emocional, física e espiritual do dia todo, não consigo e nem quero me desligar das questões sociais. Faço parte de um pequeno grupo privilegiado no Brasil, que terá acesso a esse centro de referência em oncologia. E as mulheres espalhadas pelo país afora que não terão esse mesmo tratamento? Durante anos, minha maior tensão financeira tem sido pagar o convênio, muitas vezes fiquei com ele suspenso, quase o perdi, lutei como leoa para continuar, porque ele salvou a vida de uma filha espiritual amada e porque precisava continuar o tratamento do câncer do meu pai. Muitas vezes pedi empréstimo em banco, para amigos, doações de familiares, que continuam me ajudando. Algumas vezes, aconteceram verdadeiros milagres de entrada de dinheiro em meses que estava a ponto do convênio ser cancelado. Num certo momento, em que não conseguia mais pagar, tentei transferir meu pai para o tratamento dele para o SUS no AC Camargo e tive o pedido negado.

Nos longos em que acompanhava meu pai no AC Camargo, muitas vezes me confortei pelo fato de que encontrava nas salas de espera, pessoas que estavam ali por convênios e pessoas que estavam pelo SUS, recebendo o mesmo tratamento.

Isso acabou. Pelo que ouvi dizer, o SUS praticamente não tem mais nada no AC Camargo. Nos últimos anos, com o avanço dos desgovernos neoliberais, as poucas conquistas que tínhamos (era preciso avançar muito mais) estão escorrendo como água entre os dedos do povo empobrecido e esquecido. E isso me dói nesse momento. Ainda mais numa semana em que recebemos a notícia de um projeto repulsivo de um grupo de militares de permanecerem no poder até 2035 e dois itens dos mais revoltantes é a extinção do SUS e da educação pública gratuita. Tenho o privilégio (esse convênio é a continuidade de algo que meu pai pagava há 30 anos quando trabalhava no mundo corporativo), mas não fico confortável em ter, sem que tantos não tenham.

Sinto gratidão por todas as circunstâncias e pessoas que me ajudaram a chegar até aqui e até um certo alívio por ter sido teimosa em lutar por isso, e sinto indignação, incômodo e mal-estar porque a maioria não terá o que estou tendo – e todos merecem ter.

* * *

Já são 6 horas da manhã: dor de cabeça, palpitação, glicemia alta, uma sensação de que engoli um cabo de guarda-chuva, em paz de espírito e reflexiva, eis meu relato do dia. Restará um espaço para um pouco de poesia?

Meu corpo se rebela

Em incômodos inquietos.

Mas abro a janela

Da alma tranquila.

E ao longe cintila

O amor de tantos afetos

De cuidados repletos.

O que apenas me revela

Que Deus é sempre por perto.


Diário da mama 4 – Anúncio do Calvário

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Será excessivo chamar de calvário a previsão de 5 meses de quimioterapia, depois cirurgia e depois rádio? Sei que há muita gente que passa por calvários mais longos, mais torturantes e que parecem sem fim, mas para mim, esse prenúncio me fez tremer nas bases. Assim foi a orientação da equipe do AC Camargo, depois da análise do meu caso.

Nessa semana, passei longas horas no hospital, entre consultas, exames e orientações. Saí carregada de papeis, com um calendário cheio para os próximos dois meses, não só para as aplicações de químio, mas também para profissionais da equipe multidisciplinar: nutricionista, psicólogo (apesar de já estar fazendo terapia por conta própria), endócrino, a enfermagem que acompanha a químio… tudo muito organizado, assertivo, acolhedor.

Mas também desanimador. Quando lemos e ouvimos sobre os efeitos colaterais da droga, agressiva, avassaladora, que vai fazer cair o cabelo, descamar a pele, abaixar a imunidade, que pode mexer com o intestino e o estômago, que pode causar neuropatia e até atacar o coração… meu Jesus Cristinho, é muito veneno sendo injetado em nosso corpo! E não há alternativa, à esperança de que esse ataque diminua o tumor e a operação possa ser menos invasiva e causar menos danos.

Mas o chão parece faltar. Racionalmente sabemos que nem todos os efeitos estarão presentes, que cada pessoa é uma pessoa (embora eu tenha o fator complicador da diabete), mas sempre nos perguntamos: e se eu for aquela pequena parte da estatística que teve a sequela mais grave?

E o chão parece faltar também em relação ao trabalho: será que darei conta de me cuidar, de descansar, de realizar tudo o que é inadiável e necessário para a minha sobrevivência?

Então é a hora da entrega, da confiança, da oração e do colo dos que nos amam. A onda de desânimo vem e depois se esvai. Vamos enfrentar no plural, porque tenho muita gente comigo, desse lado e do outro lado da vida.

O calvário se inicia dia 26 de maio e se até Jesus disse do Horto: “Pai, afasta de mim esse cálice, mas faça-se a tua vontade e não a minha”, então também posso me mostrar hesitante e vulnerável, lembrando que Ele está comigo e que milhões de mulheres, como eu, já passaram ou estão passando por isso… Estamos juntas.

Um instante

Um trecho da estrada escureceu

E assombra-me que a lua se escondeu.

Parece que a poesia se faz rala

E uma nesga de fel me avassala…

Que será que Deus quer comigo

Nesse instante fugaz de desabrigo?

Que há de certo num poema

Que na garganta se entala?

Fecho os olhos, respiro,

Procuro no alto da montanha

Um fôlego, um retiro

Que me acuda nessa dor tamanha…

E aí estás, coração divino,

Em que doce, me reclino…

Coração que se espraia no universo inteiro

Que é sólido, fagueiro,

Infinito luzeiro

Para inundar de paz

O minuto passageiro…


Diário da mama 3 – Desafios

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Com todos os exames nas mãos, estive colhendo a opinião de dois médicos, um médico do Einstein e a chefe da mastologia da AC Camargo. Acompanhada de primos, meus queridos Ana e Fábio, minhas amigas-irmãs, as duas Claudias (Gelernter e Mota), e meu pai, senti-me cercada por um séquito de amor e sustentação.

A notícia que me aliviou é que não terei de tirar a mama, mas apenas um quadrante. As notícias que me pesaram são as que já se sabe, mas que quando se anunciam, sempre assombram: a cirurgia, o dreno, a longa químio, com todos os seus horrores.

Apesar de todo mundo achar uma maravilha a medicina de hoje, com seus avanços tecnológicos, eu – que já quis ser médica na primeira juventude e desisti porque não queria o horror de dissecar cadáveres – euzinha acho a medicina ainda uma barbárie. Uma medicina que tira pedaços, que serra o tórax, que usa pinos e ruelas, que para curar algo provoca mil efeitos colaterais…Uma medicina enfim que vê o corpo como um mecanismo material apenas, sem conhecer suas conexões com o espírito, sem adentrar seus aspectos energéticos! Mas é o que temos para hoje. E claro que, desde o tempo das sangrias e dos purgantes, evoluiu muitíssimo. E temos que recorrer a ela com confiança, porque nesse meu caso, ela cura.

Pelo menos, o hospital em que decidi fazer o tratamento, AC Camargo, tem algumas coisas que me agradam muito: equipes multidisciplinares e humanismo.

No dia seguinte à consulta, passei angustiada. A perspectiva dos próximos meses, as idas e vindas entre São Paulo e Bragança, com a cirurgia, as químios, a rádio, tudo isso de repente se agigantou em meu peito, como uma aluvião de medos. Não duvido de que ficarei curada desse câncer. Mas o processo de cura é doloroso e longo para o meu gosto. Pode ser que depois de tudo ter passado, as coisas me parecerão ter sido rápidas.

Procurei pelos recursos de sempre: falei com pessoas queridas, que me confortaram e me apoiaram, fiz uma consulta com a endócrino que me trata há anos da diabete e que já teve um câncer de mama – e ela me deu bons e úteis conselhos – orei, recebi visitas espirituais e fiz poesia. E o coração se desanuviou. Enfrentemos o que virá e… encaremos um dia de cada vez – a frase que mais tenho escutado desde o anúncio do câncer, ou como dizia Jesus, a cada dia seus cuidados.

Durante a oração da noite, entrei em conexão profunda com Jesus e senti uma paz doce e infinita. É uma presença real, que nos conforta e acalenta. Ele também experimentou o que é viver, sofrer e morrer nesse corpo que carregamos na Terra e compreende as nossas fragilidades. E prometeu estar conosco até o final dos tempos.

Depois de um dia ruim, brotou um poema de profunda paz:

 

Ao Espírito do Mestre

 

Não sou digna que entres em minha casa…

Mas aqui estás, bem assim,

Trazendo no colo um jasmim,

Olhando-me com olhos de amor sem fim…

 

Estás aqui, ombro a ombro,

Desfazendo todo assombro

Das dores no coração…

Tudo se torna mais leve

Tal como pena breve

Que em nossa alma já inscreve

A trilha de nossa ascensão.

 

Não mais a sombra da noite

Mas a luz do pleno dia

Não mais o íntimo açoite,

Mas a perfeita alegria.

 

E mesmo se a noite escura

Se faz em certa jornada,

Teus olhos, estrelas puras

Nos conduzem pela estrada.

 

Ah mestre, irmão dos séculos

Que prometeste estar

Ao nosso lado no mundo,

Que amor teu, tão profundo,

Para sempre peregrinar

No meio de nossas dores,

Descendo de todo altar!

 

Quero apenas segurar

Nas mãos serenas da alma

Esse momento perfeito

De inteiro silêncio e calma

Em que me achego em teu peito

Em que em ti tenho meu lar!